Compreender o Risco
As doses tóxicas mínimas de paracetamol, numa única ingestão, que levam a um risco significativo de hepatotoxicidade são:
- Adultos: 7,5-10 g
- Crianças: 150 mg/Kg (em crianças saudáveis com idade entre 1 e 6 anos)
Em adultos, a toma de mais de 150 mg/Kg, ou 12g, de paracetamol é considerada uma dose tóxica, levando a elevado risco danos hepáticos. Em crianças, a ingestão de mais de 250 mg/Kg pode mesmo levar ao desenvolvimento de hepatotoxicidade severa caso não sejam devidamente tratadas.
Existem outros fatores que podem predispor o desenvolvimento de hepatotoxicidade:
- administração repetida de doses elevadas de paracetamol
- baixa frequência de tomas
- duração prolongada do tratamento
- capacidade de ativação do P450 aumentada
- baixa disponibilidade de glutationa
- reduzida capacidade de glucoronidação ou sulfatação
Também o abuso crónico de álcool leva a um aumento do risco de toxicidade hepática e necrose tubular renal, mesmo sendo tomadas doses corretas de paracetamol, uma vez que induz a metabolização pelo citocromo P450, ou diminui a disponibilidade de glutationa ou reduz a capacidade de regeneração hepática.
O desenvolvimento clínico da toxicidade ao paracetamol divide-se normalmente em 4 fases, em que os sintomas físicos podem variar de indivíduo para indivíduo, dependendo principalmente do grau de hepatotoxicidade instaurado.
Fase I (0,5-24h após ingestão): os sinais clínicos, caso estejam presentes, são inesprecíficos (anorexia, náuseas, vómitos, mau estar, sudorese...), mas o paciente pode ser assintomático.
Fase II (24-72h após): representa o aparecimento de lesão hepática, o que não significa que aconteça em todos os pacientes. Os sintomas mimetizam os de uma hepatite infeciosa; os pacientes desenvolvem dor abdominal e sensibilidade no quadrante superior direito, náuseas, vómitos, etc. A medição mais sensível para detetar o aparecimento de hepatotoxicidade é a da aspartato aminotransferase (AST), e o seu aumento antecede outros sinais laboratoriais de disfunção hepática (aumento das transaminases, bilirrubina, INR), hipoglicemia, acidose metabólica.
Fase III (72-96h após ingestão): é quando ocorre a máxima hepatotoxicidade. As manifestações clínicas podem variar de ausentes até insuficiência hepática fulminante. As mortes por esta causa geralmente ocorrem entre 3 e 5 dias após a overdose, e podem ser devido à falha de um único órgão, ou à combinação de várias complicações em diversos órgãos, incluindo hemorragias, dificuldade respiratória, septicémia e edema cerebral. Os pacientes que sobrevivem a esta fase geralmente recuperam completamente (Fase IV: 96h – 2 semanas), sem sequelas (resolução completa dos sintomas e das possíveis falhas de órgãos que tenham ocorrido).
Na maioria dos casos de sobredosagem de paracetamol, os ensaios laboratoriais normalizam em 5-7 dias após a ingestão, e não há relatos de insuficiência hepática crónica unicamente devida à overdose.
O principal órgão afetado pela sobredosagem de paracetamol é então o fígado. Aqui, a maioria do metabolismo oxidativo de fármacos está concentrada na zona centrilobular, sendo esta a primeira e mais profundamente afetada pela toxicidade do paracetamol, devido à formação local de NAPQI. Em casos mais graves a necrose pode extender-se, destruindo todo o parênquima hepático (levando a que possa ser necessário um transplante de fígado, nos casos mais graves).
O rim é o segundo órgão mais afetado em casos de toxicidade ao paracetamol: verifica-se o aparecimento de disfunção renal em cerca de 25% dos casos com hepatotoxicidade significativa instalada, e em mais de 50% dos que desenvolvem insuficiência hepática. Quase todos os pacientes com lesão hepática severa necessitam de fazer hemodiálise, devido ao surgimento de lesão renal acentuada, mas a insuficiência renal pode surgir mesmo na ausência de hepatotoxicidade.
Enquanto que o pico de distúrbios ao nível do fígado ocorre cerca de 2 a 4 dias após a sobredosagem de paracetamol, a insuficiência renal, caso se desenvolva, só se torna mais evidente após uma semana, e geralmente retorna ao normal em cerca de 2 a 3 semanas após a ingestão.
Raramente são reportadas lesões a nível de outros órgãos, mas pode acontecer, tais como problemas cardíacos ou toxicidade pancreática, por exemplo.
Diagnóstico
A determinação do risco de hepatotoxicidade após uma sobredosagem de paracetamol é feita principalmente com base na determinação sérica dos níveis de paracetamol. Para interpretar os valores plasmáticos de paracetamol, existe o chamado "nomograma do paracetamol" que traça a concentração sérica (em microgramas por mL), em função do tempo em horas após a ingestão excessiva:
A monitorização inicia-se 4h após a ocorrência da ingestão excessiva, e termina 24h após a mesma. A linha de tratamento começa com um nível de paracetamol de 150 microgramas/mL (EUA) 4h depois da sobredosagem, e termina em 4,7 microgramas/mL às 24h após.
Os pacientes cujos valores séricos de paracetamol estejam abaixo destes não necessitam de avaliação adicional ou tratamento. Esta linha de tratamento é uma das ferramentas de screening mais sensíveis e mais usada, sendo que a incidência de falhas deste nomograma nos EUA é quase nula. Aproximadamente 60% dos pacientes com valores acima da linha do "provável" desenvolvem hepatotoxicidade.
Tratamento
Em caso de intoxicação por paracetamol existe um antídoto eficaz disponível para o tratamento: N-acetilcisteína (NAC), que funciona como percursor da glutationa, levando au aumento da sua disponibilidade. Por outro lado, pode ainda substituir a glutationa, combinando-se diretamente com a NAPQI e convertendo-a a conjugados. NAC pode ainda levar ao aumento da via metabólica por sulfatação, diminuindo assim a oxidação do paracetamol a NAPQI.
Uma vez que a saturação do metabolismo não tóxico (glucuronidação e sulfatação), assim como a formação de NAPQI em excesso e a depleção de glutationa levam algum tempo, existe uma margem de tempo após a ocorrência de uma sobredosagem de paracetamol que dá oportunidade para se iniciar NAC antes que ocorram danos hepáticos, e sem que haja perda da sua eficácia.
A eficácia de NAC é quase total quando o tratamento se inicia em 8-10h após a ocorrência da overdose. Passado este tempo, contudo, a sua eficácia decresce gradualmente, e não parece haver vantagens se a administração de NAC ocorrer mais 15h depois da sobredosagem de paracetamol. Por outro lado, alguns dados sugerem que a NAC tem outros mecanismos de ação eficazes: aumenta a sulfatação do paracetamol, funciona como anti-inflamatório e antioxidante e tem efeitos inotrópicos positivos. Aumenta ainda as concentrações de óxido nítrico, promovendo o fluxo sanguíneo, e melhorando assim a disponibilidade de oxigénio nos tecidos periféricos. Estes efeitos esão associados a uma diminuição da morbilidade e motalidade, mesmo quando o cenário de hepatotoxicidade já está instaurado.
Quando a terapêutica com NAC é iniciada, esta deve ser feita até ao fim, mesmo que os níveis séricos de paracetamol desçam abaixo da linha de tratamento. Esta terapia passa pela administração oral de uma solução de 5% de NAC, de 140 mg/Kg de peso do indíviduo. Seguidamente, 17 doses adicionais de 70 mg/Kg devem ser dadas a cada 4h, até perfazer uma dose total de 1330 mg/Kg em 72h. A NAC por via intravenosa pode também ser utilizada, mas isto acontece normalmente em apenas 3 situações: quando há já insuficiência hepática fulminante, intolerância oral à NAC ou em mulheres grávidas.
Referências:
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Bertolini, A., Ferrari, A., Ottani, A., Guerzoni, S., Tacchi, R., & Leone, S. (2006). Paracetamol: new vistas of an old drug. CNS drug reviews, 12(3‐4), 250-275.
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Farrell, S. E. (2001). Acetaminophen toxicity.
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Toussaint, K., Yang, X. C., Zielinski, M. A., Reigle, K. L., Sacavage, S. D., Nagar, S., & Raffa, R. B. (2010). What do we (not) know about how paracetamol (acetaminophen) works?. Journal of clinical pharmacy and therapeutics, 35(6), 617-638.
O paracetamol tem um excelente perfil de segurança quando administrado nas doses terapêuticas.
Contudo, em casos de má utilização ou de sobredosagem, podem ocorrer casos graves, e até mesmo fatais, de hepatotoxicidade (sendo que este risco é ainda maior em casos em que o fígado já se encontre comprometido).
A maioria dos pacientes que têm uma overdose de paracetamol são inicialmente assintomáticos.
Vários dados clínicos sugerem que a toxicidade nos órgãos-alvo só se manifesta 24-48 horas após ter ocorrido a ingestão.
De forma a identificar se um paciente está ou não em risco, o médico deve tentar determinar a hora em que ocorreu a sobredosagem de paracetamol, a quantidade ingerida e a formulação.
Fig. - Estrutura química da N-Acetilcisteína
Fig. 4 - Nomograma do paracetamol
O diagnóstico antecipado e o tratamento de pacientes com intoxicação por paracetamol são essenciais para minimizar a morbilidade e mortalidade. Contudo, esta tarefa torna-se complicada devido à falta de sinais clínicos no início da intoxicação.
Os profissionais de saúde não se devem sentir tranquilizados com a falta de sintomas nos primeiros momentos após a ingestão!